Hábito


     A mulher de Jorge arranjara um part-time que a ocupava todas as manhãs. Jorge decidiu portanto confiar os seus dois filhos de tenra idade a uma ama que morava a dois quilómetros da sua casa. Todas as manhãs Jorge levaria os garotos até a casa da ama e viria buscá-los à tarde depois do trabalho. Há dois anos que todos os dias, às oito e meia, Jorge ia regularmente de carro para o escritório, que ficava a três quilómetros do seu domicílio.
    Na primeira manhã, Jorge preparou-se para levar os filhos à ama. Às sete e trinta meteu os dois miúdos meio adormecidos no carro e partiu. Dez minutos depois encontrava-se no parque de estacionamento do seu escritório e, assobiando, ia para fechar a porta do automóvel quando, estupefacto, deu com os dois pimpolhos deitados no banco de trás. Por hábito, tinha conduzido a pensar noutra coisa e estava no escritório e não em casa da ama dos miúdos. Este erro repetiu-se várias vezes no mesmo mês.
    A existência do hábito é aqui inegável. Mas este hábito que levava Jorge até ao seu escritório, independentemente da sua vontade, poderíamos mesmo dizer, não será também uma manifestação da sua memória? 
    Se reflectirmos nesta forma de memória apercebemo-nos de que é difícil traçar a fronteira exacta entre o campo em que o hábito pode ser considerado como memória e aquele em que já está dela dissociado.
   Parece que o hábito duma repetição motora dos gestos e que a memória de hábito seria a persistência de estados de consciência habituais.
   Veja bem a diferença essencial entre o hábito e a memória. Do lado do hábito, uma actividade automática de rotina, diríamos mesmo cega; do lado da memória, uma persistência de estados de consciência conhecidos, pensados e repensados. Existe assim oposição entre o plano das acções, ou seja, a disposição para agir, a persistência das disposições funcionais, e o plano de ideação, que formula os hábitos representativos.
   No exemplo que nos dá Jorge, o hábito manifesta-se sob a forma de gestos efectuados mecanicamente e que davam origem a uma acção rotineira: Jorge era capaz de guiar a seu automóvel. Em contrapartida, a memória levava o nosso amigo a enveredar por esta e não aquela direcção, em função de pensamentos habituais, de estados de consciência antigos. A memória impelia-o a dirigir-se ao seu escritório como todos os dias.
    Parece existir uma colaboração entre a memória e o hábito. Por vezes, essa associação é tão estreita que se torna difícil saber o que é do domínio dos hábitos e o que pertence ao da memória.
   Vejamos o exemplo da criança que aprende um resumo de História, praticamente a fixação palavra a palavra. Ao cabo de uma serie de repetições do texto a meia voz este estará perfeitamente sabido. Para atingir esse resultado, a criança serve-se de gestos vocais, podendo a palavra ser considerada como tal, e tal utilização é do domínio do hábito. Além disso, as palavras conduzem a um encadeamento sonoro, líquido á força de serem mastigadas, e associam-se entre si para formarem uma cadeia cujo primeiro elo será a primeira palavra do resumo. O pronunciar dessa primeira palavra desencadeia o desfilar mecânico das outras palavras, umas depois das outras. Onde reside o lugar da memória neste trabalho? Insignificante! A evocação da primeira palavra é trabalho da memória; o resto parece ser do campo dos hábitos, ajudados é certo pela memória quando o desenrolar harmonioso do texto se interrompe se subitamente um dos elos falhar.
   Decerto fez várias vezes esta mesma experiência com os seus filhos e sabe que basta lançar a palavra que se segue á paragem da repetição verbal para que imediatamente a corrente de palavras prossiga. Aliás, o discurso é rápido, monocórdico, sem expressão. A criança recita sem entender, inteiramente possuída pelo ritmo musical das palavras. De vez em quando a memória ilumina o hábito, quando este se desune e dá-lhe as imagens gráficas precisas das palavras lidas.
    Recorde aquilo que dissemos sobre os estímulos monótonos que excitam o centro do sono e inibem o centro da vigília, aumentando simultaneamente o fluxo de ondas alfa propício ao relaxamento e não à memória.
    Esta forma de fixar um texto é bem conhecida nas escolas primárias onde as professoras fazem recitar poemas aos nossos pequenitos, pedindo-lhes que executem ao mesmo tempo gestos expressivos. A criança recita uma poesia e, quando se engasga a meio do texto, faz o gesto que devia acompanhar a palavra e esta surge bruscamente no seu no seu espírito. Memória, hábito? Hábito eliminado pela memória? É perfeitamente possível estabelecem limites, se nos referirmos ás ondas que atravessam o cérebro nessas alturas!
    Há outros hábitos que não são motores mas que entram no domínio dos hábitos verbais. Quando você atende o telefone, diz maquinalmente «está». Este hábito remonta longe no seu passado. Adquiriu-o, sem pensar, na infância. Um italiano que responda ao telefone maquinalmente como você dirá pronto?. Entre você e ele não há qualquer diferença na aquisição do hábito verbal.
    Vejamos hábitos deste tipo que já nem notamos. Por exemplo, o facto de dizer «obrigado» mesmo que a ocasião não seja apropriada. Pensemos nos jogos radiofónicos em que, quando no fim o animador informa a ouvinte que não ganhou, esta responde maquinalmente: «Adeus e obrigado.»
    A memória está na origem desses automatismos que, pouco a pouco, se tornaram hábitos verbais.
   Você tem igualmente hábitos emocionais: quando eleva o tom da sua voz depois de alguém o ter obrigado a repetir três vezes a mesma coisa; ou então quando se encoleriza por serem desagradáveis consigo. A manifestação da sua impaciência, o processo sempre idêntico do aparecimento da cólera em si são hábitos. De inicio, era a memória que o fazia passar por esses diversos estados. Depois, a progressão da sua emoção passou a fazer-se automaticamente logo que o motivo que a provocava-se achava à sua frente. Ainda que, a memória é responsável por tais automatismos emocionais.
    Os psicólogos não são unânimes quando a esta forma de memória. Uns, como Ribot e Héron, vêem no hábito uma memória. Os outros, Bergson, Dugas, H. Delacroix, Pradines, manifestam as suas reservas e não deixam de opor séries objecções àqueles que pretendem que a memória englobe o hábito.
    Parece-nos que a primeira manifestação da memória na criança de dois a quatro anos é sob a forma memória-hábito. Ela aprende a mexer-se e a reconhecer os objectos que a rodeiam, levando-os à boca. A sua memória colabora quase inteiramente com o hábito e ilumina-o a par e passo. Teorias recentes afirmam que a criança que acaba de nascer é capaz de proezas que não poderíamos imaginar. A mãe, o pai ou os médicos e as enfermeiras que tratam dela devem estimulá-la, permanentemente, em múltiplas actividades físicas, falar-lhe, interrogá-la, encorajá-la, e a criança manifesta progressos extremamente rápidos e assombrosos. Estas actividades físicas e mentais desenvolvem os circuitos neurónicos, impressionam as áreas de projecção sensoriais e somáticas do seu cérebro e põem-na apta a abordar a vida bem armada para se adaptar o melhor possível a ser bem sucedida.
    Seguidamente, a criança aprende a linguagem por imitação, sob a forma, portanto, de hábitos verbais, de hábitos mímica. Ainda que, a memória conserva um papel de colaboração que não vai além da memória-hábito. Eis por que a criança que não sabe servir correctamente do instrumento, que é o vocabulário, se revela muitas vezes incapaz de se lembrar da sua própria primeira infância. Dela só conserva hábitos motores, verbais ou emocionais. Uma vez mais, lembre-se do papel primordial das áreas de projecção sensorial associadas às áreas psicossensoriais.